"Astérix nasceu adulto e não envelhecerá nunca"

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Como está Uderzo aos 80 anos de idade?

Continuo a viver, mas são 80 anos. Vivo mal este aniversário. Sei que já é importante chegar a esta idade. A data também representa profissionalmente 62 anos a desenhar. O que é muito. Mas não tenho 80 anos na minha cabeça. Parece-me um salto muito grande o que se dá dos 79 para os 80. É o salto de uma década. Não tenho idade... Tenho o mesmo espírito, a mesma inquietude, a mesma vontade de trabalhar. Espero que as forças físicas continuem a ajudar-me.

E quantos anos tem Astérix?

Astérix não tem idade. Não envelhece. Nasceu adulto. Não envelhecerá nunca. É essa a sua natureza. Poderíamos dizer que tem 30 anos se a caricatura não o deturpasse tanto. Essa é a idade em que começa a maturidade de um homem. É também quando as aventuras são reais. Eu também os tive. É uma idade ideal. E não digo o mesmo dos 20 anos. Talvez porque não sobrasse nem o trabalho nem a comida. Tive uma vida difícil antes. Mas não fiquemos nostálgicos. Astérix... Estou surpreendido pela continuidade no tempo e pela universalidade. Não estava previsto que adquirisse essa dimensão. Era a quinta personagem que Goscinny e eu fazíamos. Nunca pensámos que chegaria tão longe. Viveu mais de 50 anos e foi visto e lido em todo o mundo. Além de que os leitores estão sempre à espera do álbum seguinte. Como se tivesse sido criada uma militância sã.

Por isso é que cada novo livro é esperado com ansiedade...

Não sei se haverá outro. Preciso de uma ideia, uma razão, um argumento. Ainda não adquiriram forma. E esse é o mistério que sempre aconteceu quando o último álbum saía para a rua. Haverá outro? Não posso responder. É uma dúvida que se associa ao sentido da responsabilidade.

O que quer dizer com isso?

Foi e ainda é difícil gerir o êxito. Criou-nos uma grande pressão porque tínhamos a sensação de que não havia margem para enganos. Tínhamos medo de decepcionar. Ainda que essa pressão também tenha funcionado como estímulo.

Uma pressão maior chegou com a morte do companheiro Goscinny. Tinha sido também augurado o desaparecimento de Astérix.

Foi um momento duríssimo. Tinha apenas 51 anos... Éramos amigos íntimos. Irmãos. Pensei que Astérix tinha morrido com Goscinny. Perguntava-me o que é que poderia fazer para continuar a desenhar. Tínhamos realizado 25 álbuns e estava claro que poderia viver com os rendimentos dessas vendas. Algo aconteceu na minha cabeça. Dois anos depois da morte dele começou a rondar-me a ideia d voltar a dar vida a Astérix. O contexto não era nada favorável. Para além das minhas dúvidas, a imprensa tinha anunciado que Astérix morreu com Goscinny. Fui completamente esquecido. Doía-me saber que ninguém tinha em conta a minha obra nem o meu lugar. Depois apareceu o meu orgulho. Fiz a minha aposta. Criei a minha própria editora, contratei uma secretária e um rapaz para a administração. Pouco a pouco foi voltando a inspiração. E desde então publiquei nove álbuns em 28 anos. Não é muito. Mas creio que o Astérix sobreviveu de acordo com a sua natureza original. Tinha uma personalidade. Os seus avatares tinham conseguido superar um tipo de humor demasiado elementar. As histórias conciliavam a inquietude das crianças e dos pais. Tem graça porque estávamos condenados ao fracasso. De Goscinny diziam que era demasiado intelectual. A mim censuravam-me por as personagens serem toscas ou desmesuradas. Não consigo esquecer o director do jornal belga que me perguntava porque é que as minhas criaturas tinham um nariz tão grande. E dizia-o sem se dar conta das enormes dimensões do seu próprio nariz.

Porque é que o senhor começa os desenhos pelo nariz?

Normalmente sim, começo pelo nariz. E creio, de certo modo, ter recebido uma clara influência de Walt Disney. Os seus animais humanizados têm esse mesmo aspecto grotesco que eu dou aos meus personagens. Astérix, como sabe, nasce por encomenda. Um editor tinha-nos pedido para criarmos uma personagem relacionada com a cultura e a história francesas. Havia muitos comics americanos. Por isso encontrámos o filão dos gauleses com... humor.

Francês... e universal.

O êxito provém do boca a boca. Nada mais. Nunca houve publicidade nem campanhas comerciais. Nunca se organizou um estudo de mercado. Desconhecíamos os conceitos de orçamentos promocionais e de marketing. O boca a boca é a melhor forma de triunfo. É a opinião do público. A aprovação dos leitores. E a imprensa apercebeu-se do fenómeno quando já levava cinco anos de circulação.

Diziam que os dois eram aspirantes do general De Gaulle...

Sim. Recordo agora com humor que se disse em 1959 que De Gaulle nos tinha induzido a criar Astérix como um símbolo de resistência e de soberania. Estas teorias caíram sozinhas quando apareceu a primeira tradução na Alemanha. Foi tal o êxito que Astérix perdeu a sua dimensão supostamente patriótica e de identificação.

E política.

Nunca houve um fundo político. Teríamos incorrido na imoralidade de condicionar a visão das crianças. É um crime tentar passar ideias políticas para os mais pequenos. Digo isto porque sei o que foi o fascismo italiano. Por isso também me dá raiva os pais que envolvem os filhos em qualquer das suas actividades ou afinidades políticas. Deixemo-los escolher livremente quando tiverem idade. Em vez disso é mais honesto deixá-los viver um mundo imaginário e fantástico. Há que deixar as crianças acreditarem no que quiserem.

* JORNALISTA DO EL MUNDO

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